sábado, 2 de janeiro de 2010

O MITO DA CRIAÇÃO




  Para a Mitologia Mesopotâmica,
os seres humanos foram modelados
com argila pela deusa-mãe Aruru,
 o que constituiria a semente da humanidade.

"O mito babilônico da criação (Enuma Elish) conta-nos a revolta vitoriosa dos deuses masculinos contra Tiamat, a grande mãe que mandava no universo. Eles formam uma aliança contra ela e escolhem Marduque para seu chefe nessa luta. Após feroz guerra, Tiamat é morta, de seu corpo são formados céu e terra, e Marduque impera como Deus supremo.

Sem embargo, antes de ser escolhido como chefe, Mardu¬que tem de submeter-se a uma prova, aparentemente insignifi¬cante e enigmática no contexto geral da estória, mas, no entanto, conforme procurarei demonstrar, a chave para se poder enten¬der o dito. É esta a descrição da prova:

Então, eles colocaram uma veste no meio deles;

A Marduque, o primogênito, disseram:

"Na verdade, ó senhor, teu destino é supremo entre os deuses,

Ordena 'destruir e criar' (e) isso acontecerá!

Pela palavra da boca tua faz a veste ser destruída;

Ordena outra vez, e faz a veste reaparecer inteira'"

Ele ordenou com a boca, e a veste foi destruída. Novamente ordenou, e a veste ficou inteira.

Quando os deuses, seus pais, contemplaram a eficácia do verbo dele,

Regozijaram-se (e) prestaram homenagem (dizendo) "Marduque é rei!"•



Qual é o significado dessa prova? Não parece antes um passe banal de mágica do que a prova decisiva para saber se Marduque será capaz de vencer a Tiamat?

Para se poder entender o sentido da prova, é mister lem¬brarmos o que foi dito acerca do problema do matriarcado quan¬do examinamos o mito edipiano. O mito babilônico relata, de forma assaz clara, o conflito entre os princípios patriarcais e matriarcais de organização social e de orientação religiosa. A função da grande Mãe é contestada pelos filhos homens. Mas, como poderão eles vencer quando são inferiores às mulheres em um aspecto essencial? As mulheres têm o dom natural da criação, podem gerar crianças. A esse respeito, os homens são esté¬reis. (É verdade ser o esperma masculino tão indispensável quanto o óvulo feminino, porém essa noção situa-se mais no plano de uma explicação científica do que a de um fato eviden¬temente reconhecível como a gravidez ou o parto. Outrossim, a parte do pai na criação do filho termina com o ato de impreg¬nação, quando tem início o da mãe, de levar a criança no ventre, depois dar à luz e em seguida amamentá-Ia e cuidar dela.) Contrariando frontalmente a suposição de Freud, da "inveja do pênis" ser um, fenômeno natural na constituição do psiquismo feminino, há boas razões para imaginar ter existido, antes da supremacia masculina ficar consagrada, uma "inveja da gravidez" de parte do homem, ainda hoje encontrada em numerosos .casos. Com o fito de derrotar a mãe, o macho tem de provar não ser inferior, isto é, de ser também capaz de produzir. Não podendo gerar com um útero, ele tem de produzir de outra maneira: produz com a boca, com a palavra, com o pensamento. É esse, então, o significado da prova: Marduque só pode derrotar Tiamat se provar sua capacidade de criar, embora de maneira diferente. A prova mostra-nos o profundo antagonismo macho¬-fêmea, base da contenda entre Tiamat e Marduque e ponto es¬sencial de disputa na luta entre os sexos. Com a vitória de Marduque, fica consagrada a supremacia do macho, desvaloriza¬-se a produtividade natural das mulheres e principia o reinado do macho, baseado em Sua capacidade de produção graças ao poder do pensamento, forma essa de produção que sustenta toda a marcha da civilização humana.

O mito bíblico começa onde acabou o babilônico. A su¬premacia do deus masculino é estabelecida e nem resta qualquer traço de uma etapa matriarcal anterior. A "prova" de Mar¬duque tomou-se o tema capital da est6ria bíblica da Criação. Deus cria o mundo com seu verbo; a mulher e suas faculdades geradoras não mais são necessárias. Até o curso natural dos acontecimentos, das mulheres darem à luz os homens, é invertido: Eva nasce da costela de Adão (como Atenas da cabeça de Zeus) . A eliminação de toda lembrança da superioridade ma¬triarcal, todavia, não é absolutamente completa. Na figura de Eva, vemos a mulher superior ao homem. Ela toma a iniciativa de comer o fruto proibido; ela não se aconselha com Adão, mas apenas dá-lhe o fruto para comer, e ele, ao ser descoberto, mostra-se bastante trapalhão e inepto em suas desculpas. 56 depois da Queda é que se estabelece o domínio dele. Deus diz a Eva: "E tua vontade será a de teu marido e ele mandará em ti." Está bem claro que essa consagração do domínio masculino indica uma situação prévia na qual ele não mandava nela. 56 a partir daí e da negação completa d'a, função produtora da mu¬lher podemos identificar os traços de' um tema subjacente do papel dominante da mãe, ainda presente no texto manifesto do mito babilônico.

Esse mito oferece uma boa elucidação do mecanismo de distorção e censura tão proeminente na interpretação freudiana de sonhos e mitos. Lembranças de princípios religiosos e sociais mais antigos são ainda encontradas no mito bíblico. Sabemos agora, porém, que na época de sua elaboração eles estavam em antagonismo declarado com as idéias dominantes e, por isso, não puderam ser expressos de maneira mais explícita. E hoje só identificamos traços do sistema anterior em minúcias, to rea¬ções exageradas, incoerências, e na conexão do mito ulterior com as variações mais antigas do mesmo tema.

• Apud Alexander Heidel, The Babilonian Genesis (Chicago: University of Chicago Press, 1924), ENUMA ELISH (Quando Lá em Cima), Tabuleta IV.

40 A Tiamat babilônica, provavelmente, aparece na estória bíblica como o "Tehom, o espaço cuja face está coberta pela sombra." Erich Fronn -A linguagem Esquecida -ed.1973 - Zahar editores.

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